Andando pelas ruas da República, é inevitável esbarrar em alguma das muitas galerias de lojas que preenchem o centro da cidade. Esses espaços funcionam como uma espécie de shopping um pouco mais integrados à lógica urbana. Em geral, possuem corredores extensos, áreas a céu aberto e, muitas vezes, uma arquitetura modernista, herança da época em que foram construídos.
As galerias funcionam como respiros comerciais que há décadas fazem parte do cenário em grandes metrópoles, principalmente em São Paulo.
Mas, em uma realidade de constante transformação e especulação imobiliária, qual a real importância de preservar esses espaços?
Por que não substituí-los por grandes estacionamentos ou novos empreendimentos, como tem sido feito à medida que a cidade se torna cada vez mais gentrificada?
Não tenho todas as respostas, mas talvez a Galeria Boulevard do Centro possa explicar o porquê.
Nas avaliações na internet, encontram-se comentários como o de Scida de Souza, que afirma: “As melhores manicures e os melhores cabeleireiros. Tudo de bom.” Ou o de Michele Oliveira, que diz: “Os salgados e os pastéis são os melhores da região.” Essas opiniões refletem em parte a essência do lugar, que de fato abriga ótimas cabeleireiras e bons salgados. No entanto, nenhum desses comentários menciona o verdadeiro tesouro escondido no segundo andar do prédio: os sebos de vinil.
Desde criança, sempre tive uma relação íntima com sebos de livros. A primeira vez que andei pelo centro de Salvador, minha cidade natal, foi atrás do Sebo do Brandão, acompanhado do meu pai. Na época, envolvido com o sindicalismo e os movimentos culturais, fazendo sempre questão de ressaltar a importância dos sebos para a edificação da cultura popular. “São livros baratos, edições antigas que não se encontram em nenhum outro lugar. Fazem a literatura circular na mão do peão e do professor”, ele dizia durante nossas andanças.
A fotografia documental sempre ocupou um espaço afetivo de curiosidade na minha forma de absorver imagens. Ainda que contemple com admiração fotografias montadas, percebo que a espontaneidade de uma fotografia que retrata a realidade sempre foi capaz de despertar meu inconsciente de maneira distinta.
A visão de um fotógrafo documental se encarrega constantemente de falar da memória do outro. Talvez por isso me cause um desconforto recheado de prazer. Faz parecer que estou vendo algo que já vi — como um déjà-vu, porém com outros personagens, cenários e épocas. O olhar documental que instiga traz à tona imagens que só fomos capazes de guardar em nossas memórias ou em nossa imaginação.
O trabalho do fotógrafo Miguel Rio Branco na região do Maciel, localizada no Pelourinho, em Salvador, retrata de forma fenomenal como o registro de um espaço considerado marginalizado na cidade era, na verdade, repleto de humanidade. As figuras capturadas em 1979 se assemelham muito ao que vemos hoje ao andar pela cidade.
Explorar o segundo andar da Galeria Boulevard do Centro não só reforça a relevância dos sebos de vinil, mas também revela um espaço que parece congelado no tempo. Um tempo em que o consumo de mídias não era maçante nem desordenado. Para ouvir algo, não bastava apenas um clique.
Lá, as lojas abrem às 10h e fecham às 15h. Conversando com uma das proprietárias, ela me conta: “Chegamos às 10h e às 15h já estamos indo embora para almoçar.”
Enquanto falamos, ela prepara café para os comerciantes das lojas vizinhas, distribui pratinhos com biscoito e pão de queijo e fuma um cigarro. Na vitrola, toca Gerson King Combo, um dos grandes nomes do soul brasileiro.
Enquanto isso, audiófilos vasculham as prateleiras, garimpando raridades e trocando ideias sobre novos achados.
A galeria não é apenas um espaço comercial; ela resiste como um repositório de memória, ameaçado pelas mudanças tecnológicas e de consumo.
Além disso, mantém-se como um ponto de encontro para aqueles que compartilham uma paixão: o prazer de investir tempo e dinheiro em algo que, para muitos, pode parecer obsoleto, mas que, para esses, é uma relíquia de valor inestimável.
Em uma cidade como São Paulo, onde a rotina se desenrola em meio ao caos, esses espaços se tornam refúgios. Locais onde o tempo parece pausado, onde se pode conversar e criar conexões, mesmo que efêmeras. Enquanto os prédios crescem e a paisagem muda constantemente, poucos lugares preservam a essência de uma cultura construída no contato humano.
A reunião de indivíduos com os mesmos interesses parece cada vez mais extraordinária. O avanço da sociedade faz com que nos encontremos menos, conversemos menos e, pouco a pouco, nos tornemos abastecidos por todos os prazeres que a vida oferece em questão de segundos. Mas há algo de insubstituível na experiência de garimpar discos, folhear capas desgastadas pelo tempo, compartilhar recomendações e sentir a história em cada vinil encontrado.
A galeria, ainda que os diálogos sejam casuais e os sons dos toca-discos preencham o ambiente, segue firmemente resistindo — um grito em defesa da cultura do meio físico, que jamais se dissipará nas mãos dos apaixonados por música. Em meio a uma cidade que nunca para, esses espaços oferecem o que há de mais raro: um instante de pertencimento.