O encontro marcado

Das minhas narrativas favoritas, tem uma que me prendeu a atenção e me deixou contemplativa por alguns bons dias.

Acredito puramente que todas as pessoas contam com obstinações que fazem sentido. Um grande encontro com algo que se torna um marcador temporal de como era antes disso e como ficou depois disso. Acho que cada pessoa no cosmo tem uma relação intrínseca com alguma coisa. Muita gente tem sorte de conhecer essa tal coisa muito cedo. Outros demoram quase uma vida inteira para entender o preenchimento que faltou durante o passar de cada ano. Mas o encontro nunca deixa de ser especial. Nunca mesmo.

A narrativa que vou contar foi uma história que o meu pai me contou. O protagonismo aqui vai pra ele. No final das contas, ainda que eu acredite que os encontros acontecem com coisas, existem raras exceções em que o encontro necessário se dá com pessoas. Acho raro, mas acontece. É o caso de ter nascido filha do meu pai. Enfim.

Meu pai nasceu em 1961. Pra dar um contexto histórico, o golpe militar viria a acontecer 3 anos depois, no fatídico dia 1 de abril de 1964. Daí a gente já conhece nos livros de história todos os relatos da repressão, violência e censura. Faz todo sentido a rebeldia jovem nesse espaço. Era tudo muito propicio para se reclamar. E eu admiro os reclamadores. 

Voltando para o meu pai. Ele nasceu no interior da Bahia, naqueles espaços que a gente custa a crer que o dia acabava quando o Sol ia embora porque a energia não chegava. Lugar esse que as pessoas estão habituadas a verem cobras passando no telhado e isso não ser um evento extremamente traumatizante. Nesse lugar, o brasil capital ficava longe, mas não longe o suficiente para não se enxergar as nuances do que estava por vir. Por obviedades, a educação era precária, mínima, exclusiva e incompleta. Mas ai vem a virada

 As situações da vida não acontecem a toa. Ai que entra o lance do encontro. Ai que entram os livros. Claro que, nessas circunstâncias que disse, os livros não eram um elemento presente. A gente está tão acostumado com a realidade atual e a quantidade de informação que parece extremamente distante a ideia de um livro ser um artigo raro. Mas era. Ainda mais para as mãos de alguém inserido nesse lugar. Era uma ideia utópica ter a biblioteca de mais de uma milha de livros para o personagem dessa história.

Tempo vai e esse personagem mudou. Deixou de ser um menino frágil para começar a se engajar em causas políticas e entender a diferença entre ele e o colega branco filho de coronel. Era uma nuance ainda a ser entendida de forma mais concisa, mas isso não demoraria para chegar. Morando numa cidade maior, foi possível ter contato com outras ideias, discursos, personalidades. Mas os livros em si ainda estavam distantes.

  Ressalto o livro aqui porque ouvi desde pequena, do meu pai, que os livros mudaram a vida dele. Que eu não existiria se não fosse por eles. Que ele mesmo não existiria se não fossem pelas páginas lidas no decorrer de uma vida plena. Tudo que teve, tem e pretende ter é fruto desse grande encontro. Eu nunca questionei essa narrativa porque acho que as primeiras conversas que me lembro de ter tido com ele eram sobre essa relação. Eu nunca vi meu pai sem ser vítima desse encontro.

Voltando lá pra trás. Nessa época, com uns 17 anos, trabalhava numa oficina de carros.  A função era pintura de lataria. Função essa bem inconfortável, já que se baseava num cheiro de tinta e pneu queimado. Aliás, bem distante dos livros.

  Nessa época, tipo anos 70 e ainda na ditadura, existia o Movimento Brasileiro de Alfabetização. Era um programa do regime militar que servia para alfabetizar pessoas e capacitá-las para o trabalho braçal. Fazia parte da estratégia de alienação e ganho de uma mão de obra não contestadora, perfeito para aquele momento político. Nesse contexto, meu pai já era um militante em efervescência. Se falava sobre a repressão da ditadura em cada esquina que ele colocava os ouvidos. Ficava claro o fato de terem milhares de pessoas sumindo e políticos importantes sendo exilados. Claro que, para ele, a ditadura era um movimento de repulsa

Tudo muda num dia – o dia desse encontro que tanto falo. Em um dos expedientes na dura oficina, uma moça chega para arrumar o fusca. O personagem, meu pai, a reconhece na hora. Era uma moça conhecida na cidade, funcionária pública e que, naquele momento, estava coordenando o programa de alfabetização criado pelo governo militar na cidade. Era bem esperada uma antipatia natural surgir daí. Até ser decretado o convite.

 A tal fulana convidou meu pai para passar o olho na biblioteca que o movimento organizou na cidade. Fazia parte da infraestrutura ter um espaço com livros.

  Até então, cheio de ideias, porém sem a parte materializada delas, aconteceu uma primeira faísca daquilo que seria o ambiente preferido dele no decorrer de sua vida toda: uma biblioteca.

              O trabalho parecia ser simples. E foi. Passava horas e horas sentado contemplando o nada numa biblioteca recheada de vazio humano. Mas muitos livros. Muitos. Muitos livros para alguém que nunca possuiu nenhum. E aí que acontece.

Um dia, arrumando prateleiras, cai um livro no chão. Na maior naturalidade, ele pega o livro e devolve desatento ao lugar. Até que se depara com a contracapa, lendo o resumo da história. Era um livro do Fernando Sabino que contava os anseios de ser escritor. As frustrações de se querer ler e escrever cada vez mais, cada vez melhor. Caramba. Pareceu ter tudo a ver. Um livro nunca havia chamado sua atenção daquela forma afinal quem lê a parte de trás do livro sem julgar pela capa. Tinha ali, em mãos, um retrato de objeto de desejo por uma vida inteira até ali. Ao virar pra ler o título da obre se depara com “O Encontro Marcado”. E não poderia ser um nome mais adequado.

  Surgiu ali um roubo dos poucos que podem ser considerados dignos. Estaria ali o primeiro livro da coleção do meu pai. Hoje chega a quase 1.500 livros. Mas o primeiro foi o Encontro Marcado. No lugar menos esperado e nas circustâncias mais inimagináveis, o Encontro Marcado de fato aconteceu. E tava marcado. E o título não é atoa. E eu estar aqui escrevendo isso também é fruto do encontro marcado. Encontro Marcado - esse que, depois de quase 40 anos continua intacto e com destaque na estante. De fato, o que tem de ser tem muita força mesmo.

Tem uma frase do autor Eduardo Galeano de um livro que roubei do meu pai que sempre tenho um conforto ao ler. “Somos todos mortais até o primeiro beijo e o segundo copo”. Peço a licença poética pra acrescentar: Somos todos mortais até o primeiro beijo, o segundo copo e o encontro marcado.

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Valeu, pai