Valeu, pai
Eu adoro o efeito das palavras e adoro o efeito que elas reverberam em mim. Desde criança, sempre fui a pessoa de cabeça a mil com alguns ilustres momentos de um hiper foco digno de inveja. Naquelas de entrar em transe com uma ideia e seguir com um flerte infinito, uma prisão absurdamente prazerosa que termina com um suspiro profundo de deleite que ultrapassa qualquer sensação que já tenha passado por aqui. A sensação de ver algo palpável. Basicamente me sentir deus em materializar exatamente o que pensei (ou quase isso
Entrar naquelas de me render a prática criativa como um culto que me torna incomunicável, inacessível e totalmente indisponível para absolutamente qualquer coisa que não seja meu computador ou meu caderno. Acho que consigo elencar minha criatividade como o bem mais valioso que possuo, com 20 anos de dedicação quase que exclusiva a isso. E é exatamente esse o ponto.
Li uma frase nesses instagram clichês que dizia mais ou menos isso. Que para nós, “criativos”, nossa vida inteira tá a serviço da nossa prática criativa. Esse comprometimento inerente a nossa existência basicamente molda toda a nossa perspectiva.
Entrei nessa brisa de refletir sobre quais são os serviços que faço pra minha prática criativa. E me encontrei nas palavras. Com um destaque principal para as palavras faladas. Quem já viu o meu pai talvez perceba o estereótipo do cinquentão que usa um óculos redondo, fala palavra difícil e conversa sobre a reconquista da península ibérica na mesa do almoço. E é exatamente isso, só que melhor. Entre os milhares de ensinamentos do professor incansável, transitando entre Queda da Bastilha e Independência da Bahia, certamente a coisa mais valiosa que ele ensinou foi “Alice, a maior forma de afeto é a atenção”.
E ai que eu entro com um pouco mais de protagonismo. Talvez o maior serviço para minha criatividade seja atenção as palavras ditas ao meu redor. Absolutamente todo ser humano pode ser um professor se você quiser enxergá-lo dessa forma. Essa premissa fortalece a minha prática criativa na medida em que tudo tem um valor inestimável porque tudo passa a ser uma lição. A atenção e a presença sincera me fazem demonstrar meu afeto ao externo mas principalmente o afeto pela minha própria criatividade.
Ouvir as pessoas te faz chegar muito longe. As relações deixam de ser superficiais, mesmo que só pra o ouvinte. Nunca vou me esquecer em uma das infinitas viagens de Salvador até São Paulo que dei a sorte grande de pegar o assento no voo do lado de duas figuras interessantíssimas. Uma era uma mulher, uns 53 anos, no mais perfeito estereótipo da vegana que mora na chapa diamantina e aplaude o pôr do Sol. Do outro lado, um menino de uns 17, todo engomado mas visivelmente assustado com a situação, sem saber o que fazer direito e prestando atenção em cada detalhe. Parecia uma novidade estar num avião. Todas as minhas premissas foram confirmadas. O menino era do interior da Bahia e tava se mudando sozinho para alguma cidade do interior do Sul pra trabalhar com o tio numa oficina de carro pra poder mandar dinheiro para a mãe. Era a primeira vez que sairia de casa pra longe, sozinho e sem um celular. A mulher era uma mochileira que, ironicamente ou não, de fato morou alguns meses na chapada diamantina e tava indo pra um próximo destino, com só uma bagagem de mão e sem data de volta.
Ouvir a interação daqueles dois personagens conversando sobre as experiências completamente antônimas mas ainda assim tão similares me fez refletir durante aquele dia todo. A moça passou o voo explicando como ele faria pra chegar lá, orientou o que ele poderia fazer pra se comunicar mesmo sem o celular enquanto ele se impressionava com o fato dela simplesmente estar sempre viajando por ai. Os dois se impressionavam na mesma medida. Foi tipo um show pra mim que escutei afetuosamente em silencio. Refleti o quanto eu era diferente daqueles dois. E também o quanto eu era afetivamente idêntica aos dois.
Acho que isso é só um exemplo da afetividade como motor de criação. Aprendi com ela a pensar de forma mais desprendida e tentar ajudar ao máximo aqueles que talvez possam ter minha ajuda como algo útil. Com ele aprendi mais sobre inocência e um destemor absurdo. Tudo isso em 2h de voo.
Por isso, Se eu dedico atenção as pessoas, to dedicando atenção ao meu processo criativo. Se to dedicando atenção, to dedicando afeto por tudo isso. E o afeto pela minha criatividade é inestimável. E assim se forma um círculo que eu considero perfeito. Valeu pai..