Sobre um amigo querido
Nos últimos dois anos, eu vivi na novidade. Mudar para São Paulo com certeza moldou um pouco da minha personalidade em uma instância diferente dos outros fatos que se sucederam na minha vida confortável nesses 21 anos. Eu tento muito resgatar a exata sensação de quando eu me percebi sozinha, longe dos meus pais, irmão, amigos e todos os rostos conhecidos que já passaram por mim. Foi uma sensação, sendo bem abstrata, de personificar o mistério como um ser-humano de um metro e oitenta, crescer diante dele e colocar ele na minha mão. Foi uma forma de dizer a mim mesma que o segredo pra todas as coisas boas que viriam a acontecer pra mim nesse período estavam resguardadas no mistério. Ele vem sendo meu melhor amigo desde então.
Nesse primeiro período, existia um prazer quase que constante de andar com esse amigo do meu lado. Toda pessoa nova que eu conhecia, eu recebia uma cutucada no ombro do Mistério como um lembrete de que ele tava ali, atento a cada movimento. Ele dizia baixinho pra eu deixar ele agir e esperar o melhor disso. Todo novo lugar que eu entrava, cheiro que sentia, comida que experimentava, eu sentia o toquezinho do meu amigo no ombro. E assim as infinitas possibilidades se escancaravam na minha frente graças ao meu amigo Mistério
Nesse período, conversando muito com meu amigo Mistério eu descobri o valor da impermanência. As coisas novas, as manifestações do mistério, só acontecem nessa impermanência. Se a vida é vivida acordando todo dia as 8h, olhando para as mesmas pessoas durante anos, naquele mesmo bar, frequentando a mesma academia com os mesmos homens escandalosos e se relacionando com basicamente todos os clones do seu primeiro namorado, o mistério se torna apenas uma palavra no dicionário. Não um amigo que anda no seu ombro.
Nesse lugar de acordo entre mistério e impermanência entendi que eu vejo muita beleza em tudo que se esvai. Entendi que a intensidade combina com o efêmero. É tipo um fetiche na obsolescência programada. É justamente nessa impermanência que estive na tentativa de me aliar cada vez mais ao meu amigo Mistério.
Quando eu era mais nova, eu (como qualquer pessoa) cultivei algumas relações mais emocionais com alguns caras e coincidentemente, as mais emocionantes, eram as que tinham um prazo de duração. Um intercâmbio, fazer faculdade sei lá onde, morar em outro continente e coisas do tipo. Na época eu ficava indignada de só atrair esse tipo de relação. Mas, com a maturidade, passei a entender que esse meu amigo Mistério tava me acompanhando desde lá.
De alguma forma, o Mistério sabia que eu viveria relações e guardaria histórias de recomeços. Guardaria uma nostalgia. Ele sabia que eu esbarraria algumas dessas figuras depois e que seria uma forma de também rever a Alice que eu já fui. Parece uma brisa e é na verdade.
No âmbito do trabalho e da criação, consigo afirmar com toda certeza que meu amigo Mistério não esqueceu de mim nem por um segundo. As relações mais construtivas e prazerosas não partiram necessariamente de um objetivo laboral. As pessoas mais legais surgiram em outras instâncias e o mistério me deu a cutucada pra eu deixar ele agir. Dali saíram conversas e produções muito valiosas pra mim. Assim, qualquer primeiro contato pode ser o começo de tudo. E só existe com a nossa permissão ao Mistério em fazer a parte dele e deixar a fluidez das relações se construírem na sua mais plena imprevisibilidade.
Acho que enxergar o mistério faz entender que tudo pode estar por um segundo. Enxergar assim traz uma abertura pro universo e suas variações. Faz da gente múltiplos e receptivos. O trabalho que você achou que seria o melhor da sua vida simplesmente vai ser o que ninguém vai dar a mínima atenção. O trabalho mais despretensioso feito em 1 hora numa madrugada de tédio absoluto talvez possa ser o que faça todo mundo te enxergar como um artista que expressa a própria vulnerabilidade. A pessoa que passou pela porta e você sentiu algo estranho pode vir a ser a pessoa que vai ter um filho com você e a vida segue na mais plena coincidência misteriosa.
Acho que vale um exemplo. Uma vez fui conhecer um bar x. Lembro que demorou um pouco pra chegar mas tava na companhia de Léo, meu melhor amigo. Foi uma saída de casa prazerosa, aquelas leves pra conversar sobre futuro, planos e, claro, mistérios. Chegando na rua do bar eu senti uma coisa estranha, tipo uma projeção de mim mesma querendo dizer alguma coisa. Era o meu amigo Mistério com toda a certeza do mundo. Lembro que falei pra Léo o quão agradável deveria ser morar naquela rua. O mistério me encaminhou, um ano depois a achar aleatoriamente um apartamento nessa mesma rua. Apartamento esse que moro e que serviria de cenário pra grandes acontecimentos da minha vida como um todo. Acho que o mistério ajuda a gente a ter mais empolgação sobre as milhares de possibilidades que as coisas que orbitam ao nosso redor podem nos oferecer.
O Mistério ajuda a gente a entender que ele vai estar em qualquer lugar, queira você ou não. A parte beneficial desse sujeito é criar uma relação afetiva com as possibilidades que ele te permite ter. Uma noite para beber overpriced drinks pode se tornar um milhão de coisas. Mesmo. Poderia passar horas falando do que poderia ter acontecido nesse dia, por exemplo. Tudo por causa dele.
Espero que todo mundo possa conhecer esse meu amigo.